O que é, afinal, a Paleoarte?
- Guilherme Gehr
- 11 de out.
- 6 min de leitura

Quando pensamos em dinossauros, mamutes ou criaturas marinhas de um passado distante, a imagem que imediatamente se forma em nossa mente não é a de um fóssil, mas a de um corpo, um ser vivo, que estranhamente se mostra uma pintura ou desenho. Afinal, nunca vimos estes animais de outra forma, como vimos a imagem de um cão ou de um pardal. Temos, portanto, apenas referências artísticas, então apenas conseguimos gerar uma representação pictórica idealizada desse passado, e a real presença desses animais, em nossas mentes, talvez nunca seja possível. Seja satisfatória ou frustrante esta constatação, esse fenômeno é fruto de um ofício fascinante que une ciência e arte: a paleoarte.
Mas o que existe de científico nessa arte que retrata o que já não existe?
O ponto de partida está nas evidências: Somatofósseis (restos fossilizados do corpo de seres), e Icnofósseis (restos fossilizados da impressão destes corpos), são registros concretos em rochas que revelam muito mais do que formas: Eles falam sobre modo de vida, movimento, alimentação, ambiente e comportamento. Os somatofósseis são o molde do ser propriamente, e por isso não requerem tantas explicações. No entanto, o mundo da icnologia traz uma gama tão rica de informações que, para quem adora uma boa investigação, este ramo da paleontologia se torna muito mais fascinante do que qualquer esqueleto montado no mundo. A icnologia estuda as chamadas bioturbações, ou seja, perturbações de solo causadas por algo vivo no passado. São as galerias deixadas pelas raízes de uma planta que apodreceu; as camadas de carbonato de cálcio que formam estromatólitos (evidências da atividade de comunidades microbianas - algumas absurdamente antigas); pegadas ou marcas da pele de um animal que se deitou; túneis e tocas; fezes; ou até marcas de vômito ou urina (sim, isso existe!), e muitos outros tipos de interações entre seres vivos e sedimentos moles… ou duros! Sim, perfurações em rochas podem ter sido causadas pela atividade mecânica ou química de organismos durões (pense num molusco ou verme com a cara do Chuck Norris). Há também icnofósseis que se formam em somatofósseis! Marcas de perfurações de insetos em uma folha fossilizada, ou galerias de besouros em madeira petrificada, ou um furo no osso de um dinossauro causado pelo chifre de um oponente. São só alguns exemplos - a lista não tem fim. Esta área da paleontologia enxerga, portanto, não apenas como era o ser vivo (ou parte dele), mas o que ele fez, e isto é muito formidável. Ah! Há também os quimiofósseis! Eles são marcadores da presença de organismos vivos através de restos moleculares. São estudados por uma subdisciplina chamada geobiologia, ou geologia orgânica, que visa identificar em rochas essas "assinaturas químicas” causadas pela degradação de um monte de coisinhas vivas. Geralmente seres microscópicos marinhos que, apesar de muito pequenos quando isolados, compõem a maior parte da biomassa oceânica quando somados. O petróleo, por exemplo, é um quimiofóssil. Pois então. A partir desses vestígios, paleontólogos e artistas buscam deduzir como esses organismos se apresentavam em vida — e é aí que a arte entra como ferramenta de síntese e tradução visual.
A paleoarte não é uma invenção livre, mas uma forma de comunicação científica. Ela cruza dados biológicos, anatômicos, geológicos e climáticos, entre muitos outros, e os coloca à luz da física e da química, da ecologia e fisiologia, entre muitas outras coisas, e os transforma em imagem para tornar compreensível o que a ciência descobre. O artista atua como um intérprete visual da ciência, conectando público e pesquisa.
Além de seu papel informativo, a paleoarte também tem uma dimensão cultural e simbólica.
Os animais extintos despertam em nós o fascínio pelo desconhecido, e talvez seja essa mistura de rigor científico e “espírito de fantasia” (muitas aspas aqui) que torna as representações da vida pré-histórica tão populares — seja em museus, livros, cinema ou jogos.
Mas e a Paleoimageria, a Paleontografia, a Paleografia e a Arte rupestre?
Acho que vou me delongar um pouco, mas esses conceitos parecidos podem confundir, e precisam ser melhor entendidos.
A Paleoimageria é a representação baseada em paleoartes sérias, mas que deixa de lado o rigor científico, libertando-se artisticamente, e enviesando-se muito mais através do apelo emocional ou mercadológico, um exemplo é aquele t-rex de plástico horroroso que você teve.
A Paleontografia é talvez um pouco mais complexa, mas basicamente podemos dizer que este conceito antigo designa a descrição textual ou imagética de fósseis. Ele dá nome a uma das primeiras revistas científicas dedicadas à descrição rigorosa de fósseis, a alemã Paleontographica, fundada em 1846 pelo meu xará Wilhelm Bernhard Rudolph Hadrian Dunker, juntamente com o cara que descreveu o famoso Plateossauro - um ancestral semi-bípede dos grandes dinossauros herbívoros pescoçudos, o paleontólogo Christian Erich Hermann von Meyer.
Historicamente, portanto, a paleontografia não é a representação dos seres em vida. Contudo, porém, todavia, no entanto, entretanto, maaaas - podemos dizer hoje que a Paleontografia abrange o conceito de Paleoarte, se o considerarmos dividido em duas vertentes: A vertente descritiva (o desenho de um fóssil) e a vertente interpretativa (o desenho imaginativo do animal que gerou aquele fóssil).
Já a Paleografia é a ciência que estuda as escritas antigas, especialmente manuscritos, inscrições e documentos escritos à mão, em suportes como papiros, pergaminhos, tábuas de cera, papel, pedra ou quaisquer outras coisas que os humanos tenham inventado.
A Arte rupestre é algo bem mais complexo para uma classificação nomenclatural. Muitos pensadores e acadêmicos defendem diferentes termos para se referir à certos tipos de arte pré-histórica ou histórica antiga - como petroglifos, pictogravuras, iconografia pré-histórica, entre outros.
Mais recentemente há também o termo paleoiconografia, que soa como uma irmã da paleografia, só que voltada para imagens. Ela costuma designar a linguagem visual das sociedades pré-históricas, mas sem atribuí-la a um estado de arte ou mesmo de escrita num sentido moderno. Para alguns autores, principalmente espanhóis e franceses (países com abundância desses vestígios), é como se as imagens representassem algo que antecede a linguagem e a arte, estando mais intimamente relacionadas a manifestações ritualísticas, corporais, simbólicas, ou espiritualísticas.
Logo, podemos considerar Arte rupestre como um termo genérico - que para os cientistas se desdobra de muitas formas.
Voltando à paleoarte por fim - A Paleoarte como ferramenta transformadora.
Esse ramo das artes está a serviço da comunicação da ciência e divulgação de seus entendimentos. Dentro do meio acadêmico, às vezes ela é menosprezada (em detrimento da linguagem textual), e algumas sociedades simplesmente não tem o costume de incluir inferências artísticas em seus artigos paleontológicos, como na Índia, por exemplo. Mas parece que isto está cada vez mais raro, e a paleoarte está ganhando entusiastas mundo afora. Factualmente, a paleoarte teve seus principais pólos de desenvolvimento nos Estados Unidos e na Europa, onde o diálogo entre arte e ciência se consolidou desde o século XIX, e moldou, inclusive, o imaginário popular sobre o passado profundo da Terra. Já em grande parte do resto do mundo o reconhecimento da paleoarte como uma prática científica e comunicativa é um fenômeno recente. Nas últimas décadas, países da Ásia, África e Oceania vêm incorporando progressivamente a reconstrução artística ao campo da paleontologia, tanto dentro da academia quanto na divulgação científica. Essa expansão mundial da paleoarte certamente está vinculada à globalização e à popularização de novas tecnologias.
É nesse contexto que a América do Sul se destaca.
Por aqui, a Argentina foi pioneira ao integrar artistas diretamente às equipes de pesquisa, estabelecendo uma tradição de colaboração institucional desde as décadas de 1980 e 1990.
Já o Brasil, nas últimas duas décadas, tornou-se um verdadeiro protagonista nesse campo, com artistas proeminentes internacionalmente, inspirados por alguns poucos artistas, que anteriormente criaram as primeiras obras significativamente transformadoras na trajetória da paleoarte no Brasil. Brasílio Matsumoto foi um deles, ao ilustrar, por exemplo, o Álbum de figurinhas Dinossauros, do chocolate Surpresa.
A ascensão de uma geração de paleoartistas altamente qualificados — muitos deles com formação em biologia, artes visuais ou design — consolidou o país como uma referência mundial, tanto pela precisão científica quanto pela força estética das obras. Isso vem ajudando a aproximar o público da paleontologia brasileira e transformando a paleoarte em um importante veículo de divulgação e valorização da nossa herança fóssil. Como diria meu caro Rodolfo Nogueira: Viva a Paleoarte! Com a inteligência artificial, o trabalho de divulgação científica, assim como muitas outras atividades, pode ser acelerado e ganhar vantagens em alguns aspectos, mas em geral, ele enfrenta um grande obstáculo, visto que muitos jornais estão cedendo à praticidade de gerar imagens computacionais para ilustrar matérias quando, em verdade, essas imagens carregam contaminações da paleoimageria dos bancos de dados de intelegência artificial, além do simples fato de que cada vez que isso ocorre, um artista perde uma oportunidade de trabalho.
Creio que a união da paleoarte com a sétima arte, o cinema, representa uma oportunidade gigantesca para a comunicação da ciência, e por isso, nos próximos textos, iniciarei o diálogo sobre a animação, que apesar de historicamente pertencer ao universo puramente artístico, pode ser, na minha humilde opinião, um prato cheio para discussões científicas profundas e transformadoras.
Sabendo que dos dinossauros lentos e esverdeados de décadas passadas apareceram os ágeis e emplumados dinossauros de hoje, você pode se perguntar:
Onde está o rigor científico da paleoarte se ela muda tanto? Bom, isso, meu caro leitor, é porque a ciência é um aprendizado constante, por um lado, e por outro, é porque a paleoarte, sendo arte, está vinculada esteticamente ao seu tempo.
Esse texto é uma reflexão baseada, em parte, em assuntos abordados no Curso Arte, Ciência e Fósseis - o passado volta à vida, da Nasor, ministrado pelos grandes paleoartistas paulistas Felipe Alves Elias e Ariel Milani Martine na primeira turma, a qual tive o prazer de compor. Aproveito para deixar aqui um abraço a esses caras! O curso segue disponível e eu mais que recomendo!
Muito obrigado!


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